ENEM 2017 – Prova de Linguagem e Humanidades

Oi gente, reproduzo abaixo o texto de um amigo, o Caio Maia. Ele disserta a respeito da prova de linguagem e humanidades do ENEM, ocorrida em 05/11/2017. Confiram a seguir.

Prestei ENEM após 12 anos. Naquela época, tentávamos saber o nome dos 57 países da África. A classificação geomorfológica do Prof. Jurandyr Ross. As orações subordinadas substantivas objetivas diretas. A revolta de Filipe dos Santos, a Guerra dos Mascates e demais rebeliões nativistas.

Tudo inútil. Ao menos, do modo como apreendíamos esse emaranhado de informações. Aprendíamos tudo isso como uma rapsódia, no sentido kantiano do termo. É de Kant, em sua Arquitetônica da Razão Pura, a distinção entre rapsódia e sistema1:

“Sob o domínio da razão não devem os nossos conhecimentos em geral formar uma rapsódia, mas um sistema, e somente deste modo podem apoiar e fomentar os fins essenciais da razão. Ora, por sistema, entendo a unidade de conhecimentos diversos sob uma ideia.

(…)

O todo é, portanto, um sistema organizado (articulado) e não um conjunto desordenado (coacervatio); pode crescer internamente (per intussusceptionem), mas não externamente (per oppositionem), tal como o corpo de um animal, cujo crescimento não acrescenta nenhum membro, mas, sem alterar a proporção, torna cada um deles mais forte e mais apropriado aos seus fins” [grifos no original]

A oposição entre rapsódia e sistema permitiu-lhe mais adiante, na mesma obra, distinguir entre conhecimento histórico e conhecimento racional. Aquele que detém um conhecimento histórico “Sabe e ajuíza apenas segundo o que lhe foi dado. Contestais-lhe uma definição e ele não sabe onde buscar outra”2. Somente o conhecimento racional habilita o seu portador a aplicá-lo diante de uma variada gama de situações previstas e não previstas, guiado pela ideia, pelo princípio comum às partes de que se compõe esse conhecimento.

Doze anos atrás, o ENEM era já uma prova diferente daquela aplicada pela FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular, responsável pela prova de vestibular da Universidade de São Paulo). Exigia muito mais interpretação de texto que assimilação de conceitos esparsos. E nós, alunos preparados pela elite das escolas privadas focadas no preparo para o ingresso na Universidade de São Paulo, lamentávamos essas diferenças. Sentíamo-nos mais aptos à amplíssima demanda de respostas prontas feita pela FUVEST – a qual exigia também interpretação de textos, é verdade, mas bem menos em comparação ao ENEM.

No ENEM de 2017, prova de linguagem e humanidades, a ênfase à capacidade de interpretação se intensificou e se diversificou. Nada menos do que todas as questões foram interpretativas. Um, dois e até três textos serviram de base para as respostas.

Textos dos mais variados gêneros – filosófico, jornalístico, musical, literário, poético, publicitário e até legislativo – e obras das artes plásticas foram objeto de indagação. Dentre os filósofos cobrados, figuraram Aristóteles, Hegel, Habermas, Kant, Rawls, Bobbio. Dentre os escritores, Clarice Lispector, Machado de Assis, Flávio Rangel e Millor Fernandes, José Saramago. Dentre os poetas, Murilo Mendes, H. Dobal, Paulo Leminski, Fernando Pessoa (embora na condição de prosador). Dentre os compositores, Mano Brown (dos Racionais MC’s) e Chico Buarque. E ainda o sociólogo Anthony Giddens, o economista Amartya Sen e o ilustre jornalista e ex-aluno da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Luiz Gama.

À parte o importante debate sobre a meritocracia de mentira que ainda temos em nosso país – dada a abissal desigualdade de acesso a um ensino básico de qualidade – e partindo-se da necessidade de selecionar alunos para o ensino público superior, por insuficiência de vagas para todos, o ENEM segue no rumo certo. A prova de linguagem e humanidades exige o que é efetivamente importante para um aluno de graduação: fluência na leitura e na expressão em Língua Portuguesa. Isto não é pouco e nem é fácil de se obter. Basta lembrarmo-nos da recente pesquisa conduzida pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Organização Ação Educativa, cujos resultados conduziram à alarmante conclusão de que apenas 8% da população pode ser considerada proficiente em Língua Portuguesa3.

Não se nega a importância do estudo das regras gramaticais, dos fatos históricos importantes do país e do mundo, das classificações do relevo e do clima. Critica-se, na verdade, o ensino desses conteúdos descolado de um sentido comum, de um senso prático, de uma demonstração, ao jovem estudante, da importância desses conceitos para a interpretação e a resolução de problemas reais. Do modo como são ensinados e cobrados nas provas tradicionais, esses conhecimentos todos parecem originar-se de uma vontade arbitrária de algumas pessoas, e não da construção comum de milhares de estudiosos movidos por problemas concretos.

Em uma palavra, esses conteúdos são meio, e não fim. Possuí-los e conseguir demonstrar possuí-los diante de uma banca examinadora faz bem ao ego e é fator de status, de pertencimento a uma classe de letrados; nada diz, porém, sobre a capacidade de manejar esses conteúdos para a obtenção de soluções de problemas, mesmo teóricos.

Tentar armazenar uma miríade de informações na era digital é não só impossível, dado o crescimento exponencial da sua quantidade, como indesejado, dada a facilidade em obtê-las. Saber obtê-las, selecioná-las e empregá-las com vistas a um fim que não esteja nelas próprias é o importante – no ambiente acadêmico como no profissional.

A prova de linguagem e humanidades do ENEM é, enfim, mais democrática em comparação a uma prova tradicional. Democrática no sentido se abrir a outros caminhos de aprendizado. Um jovem estudante cujo conhecimento de morfologia, sintaxe, hidrografia e fatos históricos seja limitado e, contudo, empenhe-se na leitura de jornais e obras literárias, conheça música popular brasileira e um pouco de artes visuais terá condições de obter um bom desempenho no ENEM. É inegável a dificuldade de acesso da maioria dos brasileiros a cinema, artes plásticas, literatura. Exigir do candidato familiaridade com esses conteúdos parece, mesmo assim, mais democrático do que exigir conceitos passíveis de obtenção exclusivamente pela via do ensino formal.

Que queremos, afinal, dos estudantes brasileiros interessados em ingressar nas universidades públicas, ilhas de excelência em desenvolvimento científico e artístico, berço de grandes personalidades da política e da economia brasileiras? Queremos que demonstrem conteúdos servíveis apenas à própria vaidade ou a capacidade de contribuir com a construção de um país mais justo e desenvolvido? Se a resposta for esta última, o INEP está de parabéns.

Sobre o autor

Caio Cezar Maia de Oliveira. Servidor da Câmara Municipal de São Paulo. Advogado graduado pela Universidade de São Paulo, pós-graduando pela Escola Paulista da Magistratura e candidato à graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

Referências

  1. Crítica da Razão Pura (tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7ª Edição.Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 657.
  2. Idem. P. 659.
  3. Fonte: http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/02/29/no-brasil-apenas-8-escapam-do-analfabetismo-funcional.htm (acesso em 06/11/2017).

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